Olho de rua

Há tempos que ando nas ruas, cheguei a ter uma bicicleta. Uma vez. Quando ainda era visto.

Me roubaram a bicicleta. É difícil se manter acordado à noite. Quando abri os olhos estava claro. O sol queimava a minha pele, mesmo vestindo um monte de roupa.

Também já tive uma mochila. Antes da bicicleta. Essa os caras levaram acordado. Pensavam que tinha alguma coisa, coisa de valor. Eram minhas coisas de valor, que não valiam para mais ninguém, coisas que trouxe comigo, quando ainda era alguém.

As noites são diferentes dos dias, mais coisas acontecem. Vi dois homens abraçados, se beijavam. Vieram outros dois homens, e bateram nos outros que se beijavam. Olhei sem ver para não sobrar para mim. Nem beijo nem tapa.

Hoje fui até a Paulista, avenida bonita, de domingo tem mais gente, e nesse monte de gente, sempre tem um que solta algum. Era de dia, e tinha outros dois homens se beijando. De dia não aparecem as pessoas dos tapas. Será que eram os caras se beijando eram os da outra vez?

Não se pode confiar na memória de esguia. De canto de olho. De medo escondido no lixo.

Este olho tem dois lados. É como eles me veem hoje. Estou aqui e não estou. Me veem, mas não me gravam. Não sei deles e eles só sabem deles. Memória de prego em papelão. – Nossa casa é de papelão, não segura prego, hoje está aqui, amanhã quem sabe. – Era o que dizia o João, meu irmão de rua, antes de sumir com sua casa sem pregos.

A dó deste povo é como as casas de papelão, hoje está para um, amanhã quem sabe. Se você tem sorte, esta “dó” cai um pouco em você e vira um almoço, um café, um pedaço do que estiverem comendo.

Ouvi dizer que os homens que se beijam conseguiram o direito de serem vistos, de ficar na memória das pessoas. Eles abandonaram as casas de papelão.

Nem tudo na minha cabeça é de papelão. Minha mochila era uma delas.

O vão do MASP. MASP é o nome dessa caixa que fica de quatro na paulista. Como uma cachorra gigante. Cobre uma feira, que vende de tudo. Gosto de andar por aqui e ver coisas que não posso comprar.

Mas neste dia, eu vi uma coisa, uma coisa que me puxou um sentimento. Um prego que perdi quando fui morar no papelão. Um prego de lembrança.

Depois de tanto tempo de perdas e de viver sem chão, parei de frente a uma das barracas que vendia de tudo, que vendia de tudo. Que ficava de baixo da cachorra, e enfileirava as coisas, deixava o que vendia parelho, um do lado do outro. Sem nome, fingindo uma memória que não era a sua.

Vários papeis desbotados, quadradinhos recortados e montados, alguns amontoados, de tantos outros passarem as mãos. Corações escondidos que ali estavam jogados, abertos para serem vendidos. Lembranças de outros, lembranças minhas.

Um papel carregava uma pequena imagem, já meia apagada pelo sol e quase por completo da minha memória.

– Moço, esta foto é minha!

– Não quero encrenca, some daqui!

– É minha mãe.

– Sai daqui senão chamo a polícia.

Dois caras apareceram, me levaram para o meio da avenida. Um homem cantava fantasiado. Parou.

Comecei a gritar, a puxar briga. Puxei mesmo. Aquele é o meu prego. O meu prego! É meu, me levaram. Eles me jogaram com um rabo de arraia no chão. Duas voltas e a minha bunda ralou no asfalto. Veio guarda. Fiquei lá sentado, para me acalmar.

Os dois caras que se beijaram passaram por mim. Olhar sem ver, já conheço. Foram até a barraca das fotos. Pegaram um monte de fotos, a minha mãe estava lá. Levaram a minha mãe.

– Vou fazer um painel. – Eles disseram. Não sei que porra é essa de painel. Mas a minha mãe vai estar lá. O meu prego. Me deixaram levantar, já me esqueceram. Não tinha mais motivo para brigar. Procurei um papelão para esta noite, e para as outras também.

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